Para quem interessa a volta da torcida aos estádios?
- Jardel Messias
- 26 de set. de 2020
- 5 min de leitura
CBF planeja dialogar com os clubes para a volta dos jogos de futebol com público na
Primeira Divisão.
Jardel Messias
Os mais de 130 mil mortos por conta da pandemia do COVID-19 parecem não impressionar as esferas do Governo Federal e alguns dirigentes do futebol brasileiro. Nesta semana, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) conseguiu o aval do Ministério da Saúde para os torcedores voltarem aos estádios dos clubes participantes da Série A do Campeonato Brasileiro.
A proposta contempla protocolos e um plano sanitário para possibilitar uma capacidade de até 30% dos espectadores nos estádios, considerando apenas a torcida do time mandante. Todavia, é necessária a permissão das autoridades estaduais e municipais. A mesma proposta não contempla clubes das séries B, C e D do Campeonato Brasileiro.
A notícia surpreendeu autoridades, clubes e os próprios torcedores. Afinal, como poderia o Ministério da Saúde se preocupar mais com a volta aos estádios do que com os milhões de casos já registrados por negligência estatal? Ou ainda, como a própria CBF poderia elaborar os protocolos e plano sanitário para as torcidas sendo que, em condições normais, a organização não zela pelos torcedores?
Nota-se que os interesses envolvidos não são meramente voltados aos principais consumidores do futebol. Uma série de fatores e atores estão envolvidos neste processo onde, num reflexo de nossa sociedade, o dinheiro é a voz mais alta entre os conflitos.
O Governo
A volta da torcida aos estádios tem embates políticos e é um reflexo da linha de pensamento entre o Governo Federal e as demais esferas de poder, principalmente Estaduais e Municipais. A volta do futebol já foi uma decisão precipitada e incentivada por uma pressão forte do Presidente da República e de clubes como o Flamengo, detentor da maior torcida do país, e o Vasco, também dono de uma grande torcida pelo Brasil.
O próprio Campeonato Carioca voltando de forma antecipada ao previsto, enquanto hospitais de campanha ainda estavam próximos do Maracanã, foi um instrumento político para trazer mais popularidade ao prefeito Marcelo Crivella e ao Presidente da República, cujo possui grande base eleitoral no Rio de Janeiro, em um notável desespero por ações populistas, sem pensar nas consequências, de fato. Desde então, os demais estados e clubes foram “forçados” a voltar e se adequar para a iminente volta do Campeonato Brasileiro.
O primeiro jogo cogitado para volta da torcida não poderia ser coincidência. Com aval da Prefeitura do Rio de Janeiro e da Federação Esportiva do Rio de Janeiro (FERJ), Flamengo e Athletico disputariam a primeira partida com portões abertos desde o início do Campeonato, considerando 30% da capacidade do Maracanã, algo próximo de 20 mil pessoas. A justificativa para tal obra? “Menos 20 mil pessoas nas praias”, relatou Crivella, atestando a própria incompetência de sua gestão em desaglomerar uma região para aglomerar em outra.
Por outro lado, alguns prefeitos e governadores posicionaram-se contra a volta aos estádios, como em São Paulo e na Bahia, dois polos importantes e opositores à linha genocida do Governo Federal. Se depender de entraves políticos, a torcida terá que esperar bastante.
A Televisão
Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro vêm movimentando os bastidores entre os clubes e as televisões detentoras de tais direitos, promovendo uma ameaça constante ao Grupo Globo com um de seus principais produtos. Neste ano, a Medida Provisória 984, popularizada como “Lei do Mandante”, ampliou essa ameaça com uma medida legal que pudesse flexibilizar a negociação dos diretos do clube mandante das partidas para outros grupos, além do meio tradicional que vem sendo a Globo nos últimos anos.
Manter a audiência é essencial para a Globo manter seu poderio e influência sobre os clubes, ainda mais financeiramente. A volta dos torcedores aos estádios poderia implicar uma queda na audiência dos jogos; ou poderia ter um efeito contrário para melhorar o seu produto, de forma visual, e oferecer uma qualidade maior nas transmissões, com áudios ambientes e o aspecto emocional de fazer o torcedor envolver-se novamente com as partidas de forma mais ativa.
Os Clubes
O futebol moderno tem exigido uma gestão cada vez mais profissional e eficiente em todos os aspectos, principalmente o econômico. Clubes mais organizados tendem a ter finanças mais equilibradas e uma capacidade maior de ter um time mais competitivo e uma probabilidade maior de disputar títulos. Entretanto, a torcida, mais especificamente a bilheteria, interfere bastante nos planos dos times. Um ponto de debate incisivo é a liberação de forma não uniforme da torcida para os estádios, sem ser em todos os estados, visto que alguns governadores não pretendem liberar a volta dos torcedores tão cedo, enquanto não houver condições suficientes e seguras para esta volta.
A compra de ingressos e produtos movimentam bastante a vida financeira de um time, tornando-se cada vez mais ideal ter um plano de sócios que possa sustentar o time financeiramente. Numa situação como a vivida atualmente, quem tem esse plano bem estabelecido, consegue reduzir os danos de certa forma. Além da perda financeira, muitos clubes possuem relações específicas com suas torcidas e ambas fazem parte da identidade desses clubes. Tê-las de volta aos estádios, poderia ser um ânimo gigantesco, sem deixar de ser um impulso para sua marca.
A Torcida
Apesar do ponto mais decisivo, a torcida é o ponto mais fraco dessa roda. Com tantas preocupações envolvidas, os torcedores são apenas uma ponte para a manutenção e recuperação de interesses privados. Uma breve representação da sociedade brasileira, onde os mais fortes decidem quando os mais fracos estão mais sujeitos a correrem os riscos por suas decisões.
A volta aos estádios é precipitada e regida por um protocolo regido por gestões que se mostraram incapazes de minimizar danos à pandemia, as quais ainda contribuem para ela se manter ativa, mesmo depois de seis meses consecutivos. Os torcedores pegarão ônibus, metrôs, carros e outros meios para se deslocarem a um grande abatedouro disfarçado.
Os torcedores que estarão de volta aos estádios são os mesmos que sofrem na sociedade, no dia-a-dia, na incerteza de sair e voltar sem saber se contraiu o vírus ou não; ou na possibilidade de serem vetores para tantas outras pessoas comprometidas ao distanciamento e preservação de sua saúde.
Ir ao estádio é uma opção, um lazer, algo supérfluo do ponto de vista social. Porém, o que essas mesmas pessoas têm feito de diferente? Elas têm deixado de trabalhar? Seus empregadores têm possibilitado condições de segurança e higienização adequadas para seus empregados? Os órgãos públicos têm cuidado dos meios de transportes para evitar aglomerações e criando mecanismos para manter os índices de contaminação baixos?
Seria errado então possibilitar a volta das torcidas aos estádios? Sem dúvidas é uma decisão com precedentes absurdos, embora não seja nada mais do que um retrato fiel de uma sociedade onde as ações atendem mais a quem menos precisa. Cheios podem estar os estádios, mas, no fundo, estarão tão vazios quanto antes. Vazios de almas, valores e consciência.
コメント